3.5.07

Anti-pop

Hoje fui à Rádio USP para uma reunião e no caminho me lembrei de uma proposta que apresentei à antiga diretora da rádio há mais de dez anos. A idéia era tocar livremente tudo o que não estivesse relacionado à indústria pop, da música de raiz ao experimentalismo de vanguarda. O programa nunca se materializou, mas fiquei surpreso ao perceber o quanto ele tem a ver com o modo de ouvir música que se desenvolveu junto com a Internet. (Não deu para revisar o texto antes de publicá-lo.)

Em meados de 1990 eu e um amigo do Depto. História levamos à então diretora da Rádio USP a idéia de fazer um programa. Ainda não tinha nome, mas o conceito estava claro: tocar o que não tocava em outras emissoras.

Isso ainda é vago. Queríamos fazer um programa anti-pop para mostrar tudo aquilo que o filtro do mercado não aproveita, que não gera receitas astronômicas e que não está limitado a fórmulas comerciais.

Uma vez, entrevistando o maestro Jacques Morelenbaum, ele disse que gostava de música simples e original. Talvez não tenha dito nessas palavras, mas a idéia era essa. Buscar o material que faça sentido em um nível profundo de compreensão, independente da procedência.

Na época a diretora gostou da proposta mas pediu que limitássemos o conceito do programa. Fizemos uma sessão de brainstorming e surgiu o Planeta Som, cujo universo musical ficaria restrito à World Music e à chamada "música de raiz".

Passados alguns anos apareceu o Napster e a possibilidade de escutar música para além dos limites estabelecidos pelo mercado. Até então, música custava caro: você assistia um show, escutava rádio (e pagava se expondo aos anúncios) ou comprava álbuns, que valiam em média uns 15 dólares.

A gente comprava música como comprava livro. Não dava para fazer muita extravagância porque dez discos em um mês pesava no orçamento da maioria das pessoas. Então, ao se levar um disco novo para casa, a gente deixava ele tocando seguidamente um tempo. (Lembro do Aos Vivos do Chico Cesar que ficou meses sendo a trilha sonora de uma república estudantil que eu morei.)

Com o Napster esse cálculo perdeu o sentido. O céu era o limite. O cálculo mudou. Antes a gente comprava na certeza de que valeria a pena; depois, passamos a baixar na dúvida de que valeria a pena. A possibilidade de aquilo ser interessante bastava.

Mas houve um problema jurídico e outro técnico: as gravadoras conseguiram enquadrar o Napster, que teve que sair do ar. E era um problema transportar os arquivos MP3 de um micro para outro. Como o volume de música era grande, as pessoas precisavam queimar muitos CDs. Não era prático manusear esse material offline.

Anos se passaram até eu voltar a ter vontade de mexer com MP3. Voltei graças ao SoulSeek, um serviço para compartilhamento P2P que permite que as pessoas vasculhem as pastas de música umas das outras.

Em resumo: voce está procurando um artista ultra-raro e encontra no computador do fulano de tal. Há uma chance razoável de que essa pessoa, que tem um gosto musical parecido com o seu, conheça o trabalho de artistas que você não conhece mas pode gostar. Como explicouo meu amigo Guará, o SoulSeek é um instrumento de conhecimento.

Mas de que adianta ter música demais, encontrar coisas incríveis, e não poder desfrutar disso. O MP3 e o P2P precisam vir acompanhados de um tocador de MP3. Não qualquer tocador, mas um que tenha uma memória extensa, que caiba literalmente toneladas de informação. Ou não faz sentido.

Uma "pessoa do século passado" talvez esteja se perguntando: mas para que carregar tanta música se a gente só escuta uma por vez. E a ele ou ela eu respondo: porque já não escutamos álbuns. Álbuns são monótonos. Dos músicos pop, geralmente duas canções são legais e o resto é material de segunda para preencher o tempo de gravação.

A idéia é ouvir música como nas rádios, variando de autor, de gênero, mas sem ter que ser interrompido pelos anúncios comerciais. E para que essa experiência aconteça, não dá para ficar limitado a 20, 30 álbuns. É preciso ter centenas para a gente se surpreender mesmo.

Na garimpagem pelo SoulSeek muitas vezes a gente não sabe se aquilo que se está baixando é bom ou ruim. Primeiro você baixa e depois testa rapidamente, ouvindo uma faixa ou outra, para se ter uma idéia do material. Muita coisa já é descartada nesse momento, mas a segunda etapa é jogar tudo dentro do player - no caso, o Ipod, que é o único que eu conheço que oferece versões com dezenas de gigas de espaço.

Meu amigo Estiga é mais radical. Ele disse que não importa escutar, o importante é baixar pelo prazer de ter. O que fazer com aquilo não vem ao caso. Eu penso que se estou tendo trabalho para baixar, aquilo deve ser desfrutado. Mas - e é onde eu queria chegar - eu passei pelo menos dois anos desejando intensamente um IPod sem ter dinheiro para comprar.

A experiência não se concluía. Ter um monte de música que você não escutaria em nenhuma rádio comercial, material raro que ou está fora de catálogo ou precisa ser importado, e depender de estar em casa e com o computador ligado para tirar proveito disso. E quando se está com o computador ligado às vezes ouvir música atrapalha. Resultado: raramente usei o SoulSeek no último ano. Para que?

Mas graças à generosidade de um outro amigo do peito, comprei de segunda mão, a um preço camarada, um tijolinho branco, um cadilac dos IPods, visor de cristal líquido, com 40 giga de espaço no tanque, e muito bem conservado.

Lentamente comecei a carregar o acervo que ficou guardado no meu HD. Estou fazendo isso aos poucos porque apesar de 40 giga ser OK, não dá para abusar e encher o espaço com lixo. Já preenchi quase 14 giga e ainda tenho muito trabalho pela frente. Vou triando o material pelo Itunes, vendo se vale a pena e relacionando cada álbum com categorias que eu criei.

O Ipod vale também pelos podcasts. Eu baixo o material em inglês, que é mais diversificado, mas tenho encontrado pouco tempo para aproveitar esses programas. Agora que eu tenho a máquina, falta resolver o problema da criminalidade no país, para a gente poder andar pela rua, tomar ônibus, metrô, sem o medo de perder o brinquedo. (Ainda bem que o fone branco do Ipod virou moda e agora não chama mais tanto a atenção, porque muita tente tem.)

De todo modo, demorei umas duas semanas para aprender o principal sobre o Ipod. aliás, para aprender o que eu já sabia em idéia, mas não tinha me ocorrido o quanto isso faz sentido. Estou falando do comendo shuffle, que toca aleatoriamente as músicas do aparelho. Eu achava que ia ficar muito confuso. Tem música demais. Eu preferia escolher uma categoria. Mas hoje experimentei o poder do shuffle.

O shuffle existe justamente para fazer funcionar o conceito novo de se ouvir música. Não dá para conhecer ordenadamente a música que vamos baixando. Também não dá para escutar um álbum inteiro de cada artista. O shuffle escolhe justamente aquilo que voce dificilmente escolheria, porque não conhece e prefere o certo pelo duvidoso. Por que perder tempo com um desconhecido se eu posso decidir racionalmente o que se encaixa melhor neste momento?

E é aí que chegamos ao ponto de origem deste texto. O shuffle é o DJ ideal do programa que eu propus há mais de dez anos para a USP FM. Não haveria locutor apresentando a faixa ou o artista. É a música o que conta. Se a pessoa quiser saber o que é aquilo, entra no site do programa e checa o nome. Do contrário, é deixar-se surpreender, ser conduzido pela mensagem sonora de uma pessoa que voce nunca ouviu falar, nem sabe quem é, e que por motivos misteriosos está se comunicando com você, e aquilo também misteriosamente faz sentido, é bom, é agradável.

Álbuns mais experimentais, que eu nao colocaria para escutar, apesar de simpatizar com o som, se encaixam bem nesse esquema. Primeiro porque a trilha é muito variada; voce nao vai escutar o disco inteiro e provavelmente o que virá em seguida é totalmente diferente. São sequencias de surpresas. E segundo: se voce não está no clima de uma determinada música, uma leve pressão no botão de próximo e outra faixa entra. Como diria o professor Nicolau Sevcenko, com seu sotaque inglês: - Bárbaro!

Concluindo: o programa que eu queria fazer já existe. Uma pena que só eu possa escutá-lo, mas já é um avanço. Quem sabe mais para frente uma emissora não se interessa pela idéia - apesar dela não ser muito comercial - e me oferece uma hora por semana para eu compartilhar minhas descobertas com quem mais quiser experimentar aquilo que não toca no rádio?

Em tempo: Obrigado, Paulo Pisano, por ter me proporcionado a oportunidade de viver essa experiência todos os dias.