12.6.07

Pequena epifania (para Felipe Fonseca)

Trabalho, muitas coisas, o tempo expreme. De manhã, vindo e pensando em coisas; fazendo anotações mentais, livro, outros projetos. Aquilo, isto, lá, assim, depois... Mas a vida tem seus jeitos de injetar beleza despretenciosa em lugares improváveis.

Entrei no trem, escolhi o lugar para sentar e quando me dei conta, havia uma criança de pé no banco ao lado. (O banco em que eu estava acompanhava a lateral do vagão e o dela saía perpendicular e ficava junto da janela. Estávamos a uma torção curta de pescoço para nos olharmos de frente.) Ela naturalmente de pé, devia ter uns três anos. Falava tudo. Mas não prestei atenção nela de cara, só pensei ranzinza que talvez tivesse feito uma escolha ruim porque a menina faria barulho e me desconcentraria. (Chatice de quem viveu muito só.) Peguei meu bloquinho para não perder nada das minhas notas mentais e estava nisso quando a menina diz algo sobre um canguru na plataforma.

O pai dela - agora comecei a prestar atenção nele - respondeu que canguru existia na Austrália... no Canadá... Revi minha distância, relaxei, interagi. Disse: No Canadá, não. Aceitando a intromissão, ele concordou. Acho que sorriu.

O jardim estava ali no trem comigo, eram aqueles dois. Conversavam. Ele parecia um rapaz suburbano, calças largas, boné, rosto nordestino, magro, olhos espertos, mas contrariando as estatísticas, os lugares-comuns, as notícias de jornal, o fato dele ser um jovem pai talvez possivelmente sem emprego formal (isso aconteceu uma terça-feira por volta das 11 da manhã, pleno horário de expediente), talvez divorciado, não fez dele um pai omisso. Não vou falar sobre o visível, mas a maneira como ele adulto interagia com ela criança, chaplinianamente como no filme O Garoto. Havia ali uma relação, um vínculo, além das formalidades, muito profundo.

Percebi como ele falava com ela, usando todo o vocabulário, traduzindo o mundo para ela e acostumando seus ouvidos a palavras como "descarrilhar". (Imaginei que ele fosse mesmo um rapper, pela sensibilidade, sofisticação do vocabulário, junto com cacoetes da cultura como, por exemplo, chamar o outro de mano.) Rapper ou não, repetia como o refrão de um poema com versos livres dito ao acaso para ela não pôr a cabeça para fora, ou o braço, nenhuma parte do corpo, nem a mão. E fazia isso sem chamar sua atenção, como um lembrete, um estou aqui, sou seu pai, me escute.

A menina falava também. Os dois conversavam alto, não exageradamente, alto-claro, sem ter aquela preocupação de estar incomodando os outros ou de esconder sua privacidade dos desconhecidos, falavam livremente e ninguém no carro, que eu tenha visto, se sentiu incomodado, ao contrário, vários como eu olhavam tocados pela beleza daquele presente inesperado e meio desengonçadamente pediam com os olhos para serem chamados para dentro daquilo (e ao mesmo tempo se mantinham sensivelmente à distância para não quebrar a magia).

Uma hora, falando, acho, do horário, ele disse: Logo vamos batalhar o almoço, né, filha? E aquilo ficou em mim, eu tentando decifrar a informação. Teriam pouco dinheiro? Apenas estavam com pouco e teriam que procurar onde ou dividir? Isso aconteceu bem no começo da viagem de uma estação para outra, e até me ocorreu que ele fosse passar com ela pedindo dinheiro aos outros passageiros, mas não.

E pensei em mim, na maneira como me desligo indo trabalhar, inventando meus aviõezinhos de papel. Neste dia dos namorados, qualquer dia, aviõezinhos de papel. Pensei nessa poesia que da improbabilidade o rapaz destilava. Seria o mesmo se ele tivesse nascido com outra condição, estudado, emprego? Talvez fosse artista e sim conseguisse ou precisasse do desprendimento desse jogo de banco imobiliário em tempo integral para, no meio do dia, sair e levar sua filhinha e interagir pacientemente com ela, sem exageros, generoso, atento, instrutivo.

Quantos multimilionários, se pudessem, não dariam suas fortunas para viver aquele... aquele o que? O momento? A vida? O relacionamento?... Aquele aquilo. Eu, mesmo, que não sou milionário, me perguntei o que faltava para que eu vivesse no futuro, quando for pai, muitos momentos daquele de doação, despretenciosamente, no caminho de casa para algum lugar, no meio da incerteza, em um vagão de trem que desfila monótono pela paisagem suburbana de São Paulo. Ele consegue. Eu posso conseguir? Pensei, trabalhar em casa. Mas é isso o que falta? A condição ideal?

Fiquei um pouco com pena de mim percebendo... será que eu quero ser tão explícito com você que nem conheço? Mas a porta abriu e pelo menos, apesar das coisas, das anotações, das premências, registrei esta pequena epifania para soltá-la para o mundo.

Felipe, você que agora está na Alemanha, receba este cartão postal.